O Destino Entre as Glicínias

Um conto do Entretenimento Botânico
(composto por A Casa de Vidro, Um Berço de Heras e Os Filhos do Pôr-do-sol)

— De onde você veio, pai?

— De um pé de glicínias — Adam respondeu. — Não, sério, filho, não ria… Quer ouvir a história?

O menino deu risada e parou de arrancar os dentes-de-leão do gramado. Era um dia quente de verão, e as multidões já entupiam as rotas dos jardins de Amaranthe Hall — ninguém estava prestando atenção naquela dupla de pai e filho vendo os turistas com a distância cortês dos moradores de um ponto turístico conhecido.

E por que notariam, se tinham vindo ver as plantas? Lá estavam os jardins de plantas de cheiro, lá estavam os ciprestes onde as pessoas faziam preces e homenagens aos que partiram; ali estava a famosa estufa que tinha virado livro e, diziam, ia se tornar cenário de um programa de televisão no ano seguinte.

Para usar a expressão óbvia, estava tudo como deveria ser — uma frase que Adam sabia que não se aplicava àquele território. Era engraçado ver-se cuidando dos jardins, como seu pai havia feito décadas antes. Aquele mundo florido, fruto de muito esforço e uma certa dose de magia, guardava segredos que os visitantes nunca enxergavam. Nada ali era o que deveria ser, a começar por ele mesmo: um mero mortal guardando segredos de gente tão diferente dele.

— Como alguém vem de uma planta, pai? Não faz sentido!

— Quer ouvir a história ou não? Tem a ver com os Beatles também. E com Shakespeare. — O filho de Adam deu risada, porque não sabia se era piada do pai ou se era verdade. Adam, porém, mantinha o semblante bem sério, então o menino percebeu que havia algo diferente no ar, no que estava para ser revelado. — Era uma vez… Por que toda história começa com um ‘era uma vez’? Enfim, era uma vez um boato, lá no verão de 1965… O mundo era bem diferente…

Talvez o calor tivesse ajudado a espalhar a história como o proverbial fogo no rastilho de pólvora — os Beatles estavam vindo para Amaranthe Hall! Os moradores e funcionários do famoso jardim ornamental não confirmavam nem negavam a informação, mas quem precisava de fatos quando o boato era tão incrível? Afinal, aquele canto do Reino Unido nunca tinha sido exatamente um ponto turístico — se a banda mais famosa do país estava vindo para lá, só poderia ser para gravar algo para a televisão nos famosos jardins místicos, um dos orgulhos da região.

— Provavelmente, vão internar aqueles degenerados para recuperação, isso sim! — comentou o padre na fila do açougue. — É o que fazem naquele lugar, afinal… Desde sempre!

— Que maldade, senhor… — A esposa do açougueiro respondeu enquanto fazia as contas no caixa.

— Não vá me dizer que a senhora gosta daquelas aberrações!

— Depende, o senhor tá falando dos Beatles ou dos meninos de Amaranthe?

— Aquele lugar sempre foi um antro de arruaceiros e malucos! Eu entendo o trabalho do senhor Delaney com os soldados, que Deus o tenha, mas o filho dele… Deixando qualquer um se estabelecer naquela casa, sem referências, sem… Sem nada!

— Mas o senhor não recusa as flores que o senhor Delaney fornece para os casamentos e os funerais lá da paróquia…! — O açougueiro encerrou a conversa colocando o embrulho pedido pelo padre em cima da mesa. O pároco resmungou alguma coisa e pagou por suas compras sem fazer mais comentários. — Então, que diferença que faz?

Sim, o pároco aceitava as flores e o dízimo que a família Delaney pagava sem questionar todo começo de mês, mas em troca tinha que aturar aquela invasão de jovens cabeludos que vinha todo fim de semana atrás de fadas nos jardins ornamentais, assustando os turistas mais endinheirados que queriam simplesmente apreciar a arquitetura local.

E os funcionários do empreendimento! Sim, o pai do senhor Delaney, aquele irlandês esquisito que ninguém soube bem de onde vinha, empregava ex-soldados vindos do front do Oriente Médio após o fim da Segunda Guerra: gente que os médicos já tinham desenganado, a maioria um bando de malucos de olhos vidrados cujas almas tinham sido arrancadas do corpo. Aqueles homens se estabeleceram, alguns constituíram família na área e foram considerados recuperados pela sociedade. Outros se perderam apesar dos esforços e das preces, e Delaney tinha lamentado como se fossem membros de sua família.

E quando as pessoas de bem do vilarejo acharam que enfim tudo voltaria ao normal, quando os soldados foram transformados em civis e todos já começavam a esquecer dos horrores… Outras espécies de lunáticos começaram a ser enviados para Amaranthe por ordem de psiquiatras, médicos, juízes e párocos — gente que poderia se beneficiar de trabalho pesado no campo e dos tratamentos nada ortodoxos que os Delaney promoviam no casarão.

O padre já tinha visitado o local várias vezes e não conseguia entender como aquela balbúrdia funcionava: todo mundo almoçava e jantava junto na mesma sala, todo mundo trabalhava em conjunto, e as plantas impossíveis seguiam crescendo e florescendo. Stíofan Delaney, o filho do irlandês, assumiu as funções da casa quando o pai faleceu. E ele não se limitava a cuidar de plantas: para começar, permitiu que os funcionários fundassem um time de futebol, que competia com o pessoal da fábrica local e com o time de feirantes sempre que o clima permitia. Também tinha dado sua benção para a formação de uma trupe amadora de teatro no terreno — o grupo encenou “A Tempestade” para os turistas com certo sucesso no verão anterior; agora eles estavam ensaiando “Sonhos de uma noite de verão”, com a justificativa que o cenário já estava pronto no jardim, só precisavam de figurinos melhores.

Tinha sido a peça que, dizem, chamou a atenção do empresário dos Beatles. O boato era bem elaborado: os Quatro Fabulosos vinham para filmar um esquete para a televisão junto com o grupo amador, nos moldes de um esquete que a banda tinha feito dois anos antes — os jardins e a trupe iam ficar bem famosos, se fosse verdade.

Se perguntassem para a trupe ou para Stíofan Delaney, eles diriam que a preocupação deles não era a possível visita de John, Paul, George e Ringo. A preocupação deles era sobre o que fazer com o Adam.

Adam foi batizado assim porque foi encontrado no meio da estufa, escondido em uma sacola de compras, em pleno dia de visitação aos jardins. O primeiro homem no Paraíso — ninguém poderia dizer que Stíofan Delaney não tinha senso de humor.

Porque era preciso muito senso de humor para encarar o problema em questão: um recém-nascido, ainda com o toco de cordão umbilical preso ao corpo, largado debaixo das glicínias em flor… Para que? Para morrer ou para viver? O abandono fora completo: não havia nenhum bilhete, nenhum item que pudesse identificar pai ou mãe do bebê. A estufa recebia pelo menos trezentos visitantes por dia durante o verão, como seria possível encontrar quem tinha abandonado a criança ali? Àquela altura, o responsável por aquele crime provavelmente já estava bem longe.

A maior preocupação de Stíofan não era bem com a polícia ou os curiosos bem-intencionados em sua equipe de jardineiros. Tão logo conseguiu ficar a sós com a esposa e o pequeno Adam, após a visita de um médico trazido às pressas da cidade vizinha, Stíofan procurou por sinais de magia no corpo do bebê, na esperança de que ele tivesse sido trazido não por uma humana desesperada, mas por alguém da terra inexata à qual ele em parte pertencia. Aquilo, Stíofan seria capaz de contornar e talvez até compreender. Mas…

— Nada, nadinha, nem um pinguinho de sangue inexato — ele se lamentou para a esposa. — É tão humano quanto você!

— Estava achando que era filho do seu irmão? — Millie, a esposa de Stíofan, ajeitou os óculos pesados no rosto. Os anos de doçura ao lado do marido meio-feérico não tinham apagado de todo as rugas precoces que ela ganhara trabalhando para sobreviver na adolescência e no começo da vida adulta.

— Sou assim tão óbvio?

— Transparente como as paredes da estufa, meu amor — Millie acomodou Adam em seu colo, se lembrando de quando seus filhos eram pequenos daquele jeito. Agora os três eram adultos, todos altos como seu marido, morando longe do casarão, tocando a vida em outros prados. — Eu sei que você sente saudade dele, mas ele não teria aprontado uma dessas com você.

Não teria? Stíofan tinha suas dúvidas. Séaghan não aparecia na residência há muito tempo, afinal, mas não tinha desaparecido completamente. Ele deixava recados nas plantas: glicínias que brotavam no meio do inverno e cravos de cores impossíveis aparecendo nos vasos de um dia para o outro; cardos com espinhos bem dolorosos brotavam nos cantos da casa quando alguém tentava traficar bebida ou drogas para dentro da casa, e rosas subitamente surgiam quando um dos rapazes estava pensando em se declarar para alguém. O filho mais velho do falecido Éamonn Delaney não estava mais visível, mas estava presente o tempo todo.

Talvez Séaghan tivesse ideia do que tinha acontecido na estufa quando ninguém estava prestando atenção. O problema seria conseguir atrair o irmão de volta para a superfície dos humanos para conversar. Antes, quando Amaranthe Hall era uma casa isolada do resto do vilarejo e da humanidade, o trânsito entre os mundos era simples como abrir uma porta e entrar em outro cômodo. Agora, o casarão abrigava quarenta pessoas, e a viagem de carro de Amaranthe até o centro da cidade não demorava nem vinte minutos. Não havia muito espaço para magia naquela pequena multidão.

Os tais hippies vinham em caravanas atrás das fadas, loucos por um contato mais próximo com o oculto ou para encontrar algo fora de sua dimensão, mas aqueles que eles chamavam de “fadas” faziam questão de se manter bem longe. Stíofan sabia bem que a gente de seu sangue materno só se aproximava de quem tinha a mesma intenção e a mesma disposição para a vida… E, para usar uma expressão que seus filhos gostavam, a gente do povo inexato era sacana a não mais poder: elas adoravam dar sustos nos hippies e nos visitantes metidos a sábios, justamente porque não gostavam de ser perturbadas.

Mas Adam não era uma pegadinha das fadas, era um bebê esfomeado que passou sua primeira noite em Amaranthe Hall em um cesto de vime improvisado. Na segunda noite, ele já tinha um berço — o mesmo berço que tinha sido de Stíofan e de seus filhos. Na terceira noite, já tinha duas gavetas de roupas doadas pelas senhoras da comunidade da igreja — embora elas só tivessem doado as roupas para poder se aproximar do bebê e ver se ele parecia com alguém que elas conheciam.

Talvez fosse filho de um dos jardineiros, elas pensaram. As boas senhoras já tinham um suspeito em especial: o grandalhão moreno e mudo que encontrara a sacola. Aquele que parecia particularmente preocupado quando via o bebê no colo de qualquer uma delas, como se a criança fosse uma granada em contagem regressiva.

— Se fosse filho do Kenny, você não acha que ele já teria dito para você? — Millie suspirou.

— Do jeito que ele é? Honestamente, amor, eu não sei qual das opções seria pior!

Kenny era um homem difícil de entender, de fato. Mudo, ele não era — tinha sido um Calibã fora de série na montagem inaugural do grupo de teatro do casarão e, quando estava de bom humor, dava para ouvi-lo assobiando alguma coisa dos Beatles de quase qualquer canto da casa.

Ele só não era uma pessoa muito sociável, só isso. Suas duas alegrias eram as espécies botânicas na estufa e sua vitrolinha portátil. Kenneth Shea era conhecido entre os moradores do casarão por gastar boa parte de seu salário com discos de música pop, e o resto com todo tipo de bobagem que aparecesse na frente: bolinhas de gude, carrinhos de corda, balinhas e pirulitos, como se fosse uma criança com mesada e sem supervisão de adultos dentro de uma loja de departamentos e não um adulto de vinte e poucos anos e um metro e noventa de altura.

Ele não era nem tolo, nem lento. Era só alguém que não tinha muito e nem pretendia ter — não por falta de objetivos mas por pura incapacidade de se preparar para um futuro além do dia seguinte.

O responsável por ter encontrado Adam debaixo dos pés de glicínias era cria do fim da guerra: pai morto em batalha, mãe ausente, professores violentos e sociedade ignorante que lhe dava socos e pontapés simplesmente porque podia, porque era necessário moldá-lo para caber no que se esperava de um homem.

O que os adultos na infância não estragaram, a brutalidade inútil do serviço militar obrigatório conseguiu arruinar de uma vez. Foi um capelão da base aérea que o enviou para Amaranthe Hall, na esperança de que houvesse alguma salvação para o brutamontes terrivelmente encolhido dentro de sua armadura: um bom soldado, sem dúvida, mas terra arrasada por dentro.

O que o capelão havia encontrado na mente de Kenny e como Kenny tinha sido convencido a aceitar a oferta de emprego nos jardins, só Deus sabia. O fato é que ele veio para Amaranthe com uma mochila e uma carta de recomendação — e Stíofan, reconhecendo ali um homem talentoso, logo o empregou para cuidar das plantas sem fazer perguntas sobre sua vida pregressa.

Quatro anos tinham se passado desde então, e Kenneth fizera dos jardins místicos sua vida — algo simples quando não se tinha para onde voltar e nenhuma pessoa para quem enviar cartões-postais. Ele levava jeito com as plantas, havia dinheiro para discos, e ninguém lhe dava ordens aos berros, o que mais ele poderia querer?

Naquele instante, talvez ele quisesse um pouco de sossego. Enquanto Stíofan e Millie tentavam encontrar uma resposta sobre a origem de Adam, Kenneth ensaiava sozinho suas falas na estufa enquanto podava os canteiros.  No entanto, por mais que se esforçasse, ele não conseguia assobiar direito, não conseguia juntar duas palavras para formar um pensamento. 

Eram as glicínias: aquela onda de flores em cachos que pendiam do alto das paredes e até do teto, exalando aquele perfume pesado, que às vezes lembrava incenso de igreja. Aquelas flores eram um dos cartões-postais do jardim ornamental, especialmente depois que uma escritora local tinha feito sucesso transformando a estufa e as flores púrpuras em cenário de romance. As mulheres apareciam em bandos no verão para tirar fotos cercadas pelas cortinas de glicínias, se imaginando como a heroína do livro, abandonada pelos humanos e cortejada por um jardineiro misterioso.

O jardineiro de verdade, porém, não tinha lá muito ouvido para prosa —e nenhum amor pelas glicínias, que só lhe faziam espirrar. O fato de ter enfrentado sua alergia para tirar a sacola com Adam debaixo das flores foi elogiado por Stíofan — não fosse por ele, sabe-se lá que horas e em que estado eles teriam encontrado o pobre bebê.

Era a frase errada para se dizer para um homem como Kenneth, e desde então a cena se repetia dentro de seu cérebro a cada dez minutos: o choro fraco de quem estava desistindo de lutar, o calor abafado aos pés das plantas, e a cara de susto de todos ao redor. Como ele queria esquecer o que tinha visto! Como queria que outra pessoa tivesse encontrado aquele embrulho — qualquer pessoa, menos ele.

Agora, cada vez que uma daquelas ratazanas de paróquia aparecia para pegar Adam no colo, Kenneth ficava com medo de que elas o acusassem de alguma coisa. Ou, pior, ficava com medo que fossem levar o menino embora. Cada vez que ele começava a chorar, ele se desesperava para ajudar, mesmo que ele não tivesse ideia de como cuidar de alguém daquele tamanho.

Aquele choro o tirava do sério, exatamente como sua mãe dizia que ele fazia com ela. Será que era por isso que tinham largado o menino entre as plantas?

— Por que justo aqui debaixo? — Kenneth ergueu alguns galhos de glicínia para ver o esconderijo, enquanto ignorava o nariz coçando e os olhos marejados. Nada senão musgo e terra úmida, nenhuma trilha de entrada ou saída. — Tanto lugar pra largar aquela sacola, e tinha que ser justo aqui!

— E isso importa? Você achou o bebê no fim das contas.

Kenneth tropeçou no vazio e caiu no meio do canteiro, arrancando um dos galhos com o tombo. Ele olhou para trás, assustado: não tinha ninguém ali dentro. E ninguém do lado de fora: as paredes de vidro mostravam apenas os jardins externos naquele início de manhã. Seus colegas e seus patrões ainda estavam tomando café dentro do casarão, os visitantes ainda não tinham chegado. 

— Achar, eu achei, sim — Kenneth respondeu mais para si mesmo do que para seu interlocutor invisível.

— Então por que está procurando o que não está aí? As fadas não sequestraram o bebê, não o trocaram por ninguém. Não tem como devolver o pacote para elas!

— Não tem? Mas elas precisam pegá-lo de volta. Eu não devia ter tirado a sacola dali. Foi um erro! — O jardineiro sentou-se, irritado porque o tombo tinha aberto um rombo nos joelhos de sua calça de trabalho. Ainda bem que não tinha se machucado muito.

Não houve tempo de concluir o raciocínio: os galhos de glicínia desceram do teto e esconderam Kenneth dentro do canteiro, em uma crise de espirros.

Quando ele finalmente conseguiu se controlar e puxar as flores para longe, ele não estava mais na estufa, mas em um jardim malcuidado nos fundos de uma construção perto de um rio. O lugar tinha sido uma casa, provavelmente em um passado não muito distante: as paredes ainda não tinham sido totalmente engolidas pelas heras e pelo musgo, e dava para notar flores que tinham sido criadas em estufa entre os tufos de mato farto.

Uma mão calejada e cravejada de ônix, fria como o inverno, pousou no ombro do jovem jardineiro. Era um homem muito alto e muito ruivo quem estava prendendo Kenneth no lugar — muito parecido com o senhor Delaney, mas ao mesmo tempo mais maltratado pela vida, o corpo manchado com poeira escura. Uma criatura como aquelas que o livro bobo tinha descrito: feito de estrelas e de terra, a tal gente invisível que morava nos jardins místicos.

— Certo, então não era invencionice daquele maluca lá — Kenneth sussurrou.

— Eu diria que ela até aliviou um pouco na descrição… Enfim, olá, garoto. Você estava procurando um buraco para encontrar as tais “fadas”? — Kenneth assentiu — Sabe, eu esperava que você ficasse assustado com o truque. Em geral, espero pelo menos uma expressão chocada.

— A anfetamina que me fizeram engolir no exército me dava pesadelos bem piores, moço — Kenneth deu de ombros. — Enfim, o senhor é gente de lá, então? O senhor precisa levar o bebê.

— Seria ridículo, não seria? — O ser inexato se afastou na direção das ruínas, aparentemente desconversando. — Você o encontrou, não eu. Eu tenho te observado. Você leva muito jeito com as plantas.

— Seu Stíofan me paga pra cuidar do jardim. Se me pagasse pra esfregar o chão, eu esfregava. É só isso. — Kenneth deu de ombros, olhando na direção do rio. Na distância, o contorno da fábrica de porcelanas dominava o ambiente. A mãe do bebê talvez trabalhasse ali. Como ela dormia à noite? Será que ela rezava para que a criança estivesse bem? Ou será que agradecia aos deuses por não precisar mais pensar no assunto nunca mais? — De onde você veio? — Kenneth não percebeu o que tinha falado até ouvir as palavras do lado de fora de sua cabeça.

— De uma terra que olhos humanos não vêem com frequência. — O homem voltou-se para Kenneth. Naquele instante, ele se pareceu muito com o pai do senhor Stíofan, mas Kenneth não estava com cabeça para pensar no assunto. — Mas isso não importa muito. Por que quer tanto que eu leve o pobre menino? Isso anda corroendo sua cabeça desde que você o encontrou. Dava para ouvir do outro lado do céu. Pode me dizer o motivo?

— É que se fosse assim… O senhor entende… Se não fosse como eu, ou como os outros lá do casarão… Ficava mais fácil. Pelo menos não ia ter que ficar pensando muito no assunto. Seria mais fácil pra contar para ele, quando ele fosse grande. A gente não fala pras crianças que elas vieram dos repolhos? Ou que a cegonha trouxe?

— De onde você veio?

— Do fundo duma garrafa de uísque, segundo minha mãe. Do meio do inferno, segundo o sargento lá no exército. O senhor escolhe. Escuta, não dá pro senhor leva-lo embora lá pra sua terra?

— Por que eu deveria?

— Porque se uma daquelas ratazanas lá da igreja ficar com ele, capaz de criarem que nem eu. Isso lá é vida que alguém mereça?

Kenneth olhou para baixo e tomou um susto: enquanto andava, aquele homem imenso deixava um rastro de trevos e margaridas para trás. Ele já tinha visto aquilo dentro da estufa muitas vezes, e ninguém soube lhe responder por que ou como acontecia.

— Mas por que você se importa?

— Sei lá! — Kenneth estava começando a ficar com dor de cabeça. — Porque é meu aniversário amanhã e ninguém sabe. Porque o coitado estava com tanta fome quando eu o achei, e se for criado como eu, ele vai viver com fome. Porque eu tenho pena da mãe dele, e eu não gosto de pensar nisso. Eu tenho pena dele que vai ter tanta raiva da coitada, e ela provavelmente só o largou porque senão ela ia afundar com ele… — O jardineiro olhou para as ruínas novamente, e para as trilhas de trevos e flores que iam e vinham do lugar. Aquela criatura não escolhera o local ao acaso. — Isso aqui foi sua casa? — O homem ruivo assentiu. — E por que ainda está assombrando o lugar? Não tem mais ninguém aqui.

— Eu sei. Mas a saudade ainda me persegue, às vezes. Eu fui feliz aqui.

— Sorte a sua, moço. Eu nem isso tenho. — Kenneth resmungou. — Olha, se não pode levar o menino pra sua gente, então me devolve lá pra estufa, pode ser? Não dá pra esperar que uma roseira dê cravos….

— Mas dá para esperar que uma roseira dê rosas. Se acha que alguma ratazana vai levar o bebê, ponha-se na frente dela. Você não tem mais dez anos de idade, Kenneth.

Quando o rapaz piscou os olhos, tinha pelo menos dez pessoas ao redor dele. Precisou de uma força-tarefa para tirar o sujeito de dentro da estufa. O senhor Stíofan disse que tinham lhe encontrado desmaiado entre as glicínias; Millie tinha mandado chamar o médico, achando que a crise alérgica de seu funcionário tinha sido a causa do desmaio.

E, misturado a tudo isso, o choro persistente de um bebê recém-nascido que não parecia encontrar sossego nos braços de ninguém, passado de colo em colo como um pacote. Kenneth fez um gesto, e um dos colegas deixou o bebê com ele.

— Olha aí, parece até imã — alguém comentou. — Colou no Ken, parou de chorar.

— Tudo bem por mim — Kenneth respondeu, ainda muito tonto, acomodando o bebê em seu colo.

Em um dos porta-retratos na escrivaninha do senhor Stíofan, um homem ruivo franzia a testa para a câmera. Atrás dele, uma casa com um jardim, em um tempo que parecia tão distante quanto o sol e as estrelas no céu. O mundo que um dia tinha existido, e que aquele estranho ser inexato ainda pranteava enquanto forçava outros a seguirem com suas vidas.

Tinha acontecido, e eis tudo: ele nascera de uma garrafa de uísque e de muita raiva, mas não precisava ser uma ruína para sempre. E Adam, acomodado em seu colo, não precisava ser uma ruína tampouco. Havia como mudar as coisas. Não seria perfeito, porque nada era, mas seria uma rota diferente.

— Foi assim que tudo aconteceu — Adam deu risada, afagando a cabeça do filho. — Acredite se quiser.

— E os Beatles?

— Ah, os Beatles… Bem, que maçada. — Adam tinha até esquecido daquele detalhe. — Eles não vieram para a peça… Quer dizer… Não assim, oficialmente falando… Quer que eu te conte? — Ele se ergueu, batendo a grama das calças, um sorriso de quem tinha muitas outras histórias para contar, e muito tempo para contá-las. Tempo, uma dádiva que ele recebera de um homem que o amara, e que ele desejava relembrar e honrar enquanto houvessem plantas, flores e pessoas que fossem capazes de encontrar sentido quando tudo parecia perdido.

Créditos das ilustrações botânicas: Rawpixel. // Fotos por Chris Carter e Suzie Hazelwood via Pexels.

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