“Entre o Céu e o Solo”
Uma história de Romanstasia Histórica
Se você chegou até aqui, provavelmente leu Prosérpina (publicada pela Noveletter e disponível via Amazon com conteúdo extra, ou ainda pelo Tapas e Wattpad) e ficou curiosa para saber qual trecho da história seguinte deste universo eu iria selecionar.
Bem, sejam bem-vindas a um mundo de rosas, venenos e pessoas que mudam de rosto… e que dariam um braço para não terem esse tipo de poder…

Em Prosérpina, o melhor amigo do personagem principal é um sujeito que atende por dois nomes: às vezes ele é Paul Alexander Doyle, um marchand com belos olhos verdes. Às vezes ele é Pável Alexandrovich Dorofeyev, especialista em joias e conhecido por seus deslumbrantes olhos azuis.
Antes fosse só um caso de dupla personalidade ou de estelionato: o caso é que é Pasha (como seus amigos o chamam) é mesmo as duas coisas. Seu rosto muda de formato de acordo com a situação em que se encontra, ou o susto que toma… Mas como foi que isso aconteceu?
Esse estranho poder é fruto de uma maldição que ele recebeu ao nascer, e que lhe condenou a uma vida vivida pela metade – às vezes entre humanos, às vezes bem longe deles, sem conseguir se estabelecer em canto nenhum. Dez anos antes das aventuras de Prosérpina, porém, esse agente duplo entre o céu e o solo encontrou uma desafiante à altura…
Gwen não era a jovem senhora pacífica com louças bonitas e uma casa cheia de rosas que vocês conheceram em Prosérpina, mas já trabalhava na causa de mulheres e crianças abandonadas por causa de magia. Ela era uma parteira freelance, indo de cidade em cidade com sua carroça, atendendo onde fosse chamada e desaparecendo quando não era mais bem-vinda no local.
E um dia, eis que um sujeito de olhos verdes (ou eram azuis?) cruza seu caminho, durante um de seus compromissos. Não foi exatamente amor à primeira vista, mas a convivência forçada resultou em um romance fulminante, que deveria acabar com a chegada do inverno.

Afinal, tudo na vida de Pasha termina no primeiro dia de inverno, inclusive a própria vida dele.
Pois é. Eu avisei que era uma maldição.
Só que, vejam vocês, quando o verão começou de novo e Pasha foi devolvido à Terra… Ele caiu outra vez no caminho de Gwen. Chamem de coincidência ou de destino, o fato é que os dois agora tem uma missão: tentar descobrir como vencer essa maldição. A resposta está escondida entre canteiros de rosas…

Pediram um trecho *dramático* da história – eis então o drama. Imaginem uma estrada empoeirada, nada senão campos planos e sem graça até onde a vista alcança. Gwen deveria estar de férias – Pasha arranjou tudo para que eles tivessem “vida de nababos” naquela temporada -, mas um chamado urgente a obrigou a lidar com um cliente particularmente difícil, um ser mágico que queria levar consigo o filho que teve com uma humana. A conclusão do caso deixou Gwen muito irritada, e Pasha achou que um passeio iria fazer bem. O resultado, vocês leem abaixo.
—Pasha, você não pensa naqueles que deixou para trás?
— Às vezes.
— Sente falta deles?
— Às vezes. Por que a pergunta?
— Como posso te explicar, se nem mesmo eu entendo? É engraçado, dizem quem você não pode sentir saudade daquilo que não teve, mas eu me pego com saudade de família. De filhos. — Gwen olhou para o lado. — Ano após ano, sem folga, sem perdão. Tantos bebês que passam pelas minhas mãos. E cada vez que dou as costas, que o caso é concluído… — ela suspirou, engolindo a muito custo as lágrimas.
Pasha fez com que a caleche parasse na beira da estrada. Aquela conversa não ia acabar bem, mas Gwen precisava falar, e não seria ele quem impediria isso. Há quanto tempo aquele assunto estava infectando seu coração? Com certeza, era o mesmo tanto de tempo da tristeza que ele carregava quando se lembrava de Madame Alexandra e de Nadyezhda. Talvez até mais tempo, porque ela vivia doze meses por ano naquele mundo que os odiava, que fazia questão de lhes destruir. Ela tinha de aturar coisas que ele nem mesmo tinha ouvido falar por conta de seu sexo e de sua origem. Aquela canga no pescoço seria pesada demais para qualquer pessoa normal, mas em uma mulher que tinha de lidar com o que ela lidava…
—Você não entenderia, eu acho — Gwen seguiu respirando fundo para controlar a voz, para não deixar nada transparecer, e ainda assim a dor se fazia visível. — Não faz sentido nem para mim. Não faz sentido. Eu sei que você não tem como ficar, que não tem controle de si mesmo. Eu sei que é tudo ilusório, que é feito para acabar. Mas parte de mim insiste em se iludir até o fim, e isso me mata.
— Nós já conversamos sobre…
— Não, não conversamos. Nós temos um acordo, é diferente. Vamos fingir que não estamos vendo o precipício, porque quando você for engolido pela terra, eu vou ter que viver só de lembrança. E não queria ter que passar por isso! E ao mesmo tempo…
— Gwen, isso faz sentido. Claro que faz sentido. Você quer um filho, mas não quer que ele suma dos seus braços do nada e reapareça nos braços de outra mulher dali seis meses, ou um ano, ou dois. Você não quer cria-lo sozinha, mas não pode contar comigo porque minha maldição é um fardo. Você quer porcelanas floridas e uma cama confortável e um jardim com rosas, mas os sacrifícios para conseguir isso sendo quem você é não valem a pena. Esqueci algo?
— Por que tinha de ser você?! — Gwen perdeu a compostura — Por que justo você?!
— Eu me pergunto a mesma coisa! Por que você? Por que eu aterrissei dentro da sua carroça? Por que voltei para você no verão seguinte? Por que você me obriga a olhar no espelho e escolher uma cor para os meus olhos? Por que você me dá vontade de procurar minha irmã e perdoá-la por ter ido embora depois que ela me chamou de monstro interesseiro?
— Nadya se arrepende do que disse.
— Eu nunca te disse o nome dela — Pasha ficou rubro do nada.
— Não, você nunca disse. Você não sabe que ela se casou tem um ano e meio. Que ela mora em Londres agora. Que ela quer vê-lo e esperou muito tempo para se casar na esperança de que você a conduzisse ao altar. Ela te chamou de monstro interesseiro?
— Disso e de muito mais. Um monstro que atrapalhou a vida dela, porque sempre que eu voltava, não importa onde eu estivesse, eu fugia para reencontrar Madame Alexandra. O que mais eu poderia fazer? Ela era minha mãe, na falta de outra responsável para o cargo. Ela me amou como mãe. E Nadyezhda… Ela queria o amor da mãe dela só para si. Claro que queria. Eu fui tolo em crer que… ela me amaria como um irmão. Por que ela amaria um monstro? E eu sei que sou esse monstro para você também. Por mais que eu te ame… — E a palavra engasgou o resto do discurso. Era um espinho atravessado na carne, sangrando entre eles. — Você me ama, Gwen? Ou ainda acha que é tudo truque? Porque eu tacaria fogo no mundo por sua causa!
— E eu já ouvi isso tantas vezes. Não podiam viver sem mim, os desgraçados, não podiam viver sem mim. Mas viveram, e vivem, e outras tiveram o que eles não quiseram me dar! Outras casaram com eles, e tiveram filhos com eles, e moram nas casas bonitas com rosas e porcelanas ao lado deles. Os filhos da puta não podiam viver sem mim, mas eles não morreram quando quebraram meu coração e foram embora. Não preciso que incendeiem o mundo por mim, Pasha. Eu só quero olhar para você e saber que você não vai sumir.
Era bem mais do que qualquer outra pessoa havia dito para ele em toda sua vida — era mais do que ele tinha se atrevido a desejar de qualquer m, mesmo quando ele era mais novo e achava que o futuro se encarregaria de resolver tudo. Gwen não disse que o amava, ela demonstrou que o amava, e aquilo valia mais do que todas as joias de todas as Coroas do mundo. E, naquele instante, ele teria mesmo posto fogo no mundo — não por ela, mas para impedir que as coisas mudassem, para cristalizar aquela certeza dentro de si para toda a eternidade.
— Mas você vai sumir. Daqui a dois meses, quando começar o inverno, você vai embora — Gwen enxugou as lágrimas com um lenço. — E sabe-se lá se vou encontrar de novo. Sabe-se lá em que país você vai retornar. Se eu vou estar viva, ou em liberdade, ou…
— Gwen, você me acha um monstro?
— Claro que não.
— O que eu sou para você?
— Algo que eu queria entender. Porque se eu entendesse, eu seria capaz de aceitar. Ou de tentar consertar. Eu procurei Nadya porque queria descobrir de onde veio essa maldição. Não sei se agi certo, você nunca falou de familiares. Mas…
— Você quer consertar uma maldição. O que eu sou, um dos seus clientes?!
— Não posso agir sem sua autorização.
— Isso não responde a minha pergunta.
— Você é importante para mim. Claro que quero consertar o que te aflige! Quero que você viva uma vida por inteiro! Pode não ser ao meu lado, mas pelo menos…
— Pelo menos…? — Pasha sentia como se fosse sair voando.
— Pelo menos seria algo bom. Não me sentiria amargurada de vê-lo partir. Faz sentido?
— Claro que faz sentido. Que os deuses abençoem sua teimosia! — Ele a agarrou pelos ombros e a beijou de um jeito desajeitado, sem saber o que fazer ou como reagir. — E você não me verá partir para lugar nenhum, madame. Pode apostar. Mesmo que isso dê errado, e as fadas me arrastarem de volta pro inferno, eu volto. Podem me jogar na Rússia, eu volto. Não duvide! Por você, eu volto!
Ilustrações: Samia Harumi para Noveletter / Foto das rosas: Irina Iriser via Pexels.
