O começo da jornada, ou: obrigada, Jules Verne

Uma discussão recente nas redes sociais de autores: por onde você começou a ler Fantasia / Ficção Científica?

Minha resposta é um pouco… complexa.

Tive uma educação literária meio óbvia, para uma criança nascida em 1981. Ruth Rocha, Eva Funari, Lygia Bojunga Nunes, Ziraldo e Monteiro Lobato (meio que já na descendente no quesito popularidade com os alunos). Depois veio a coleção Vaga-lume e Pedro Bandeira. Uma excelente formação, eu diria. Um privilégio de ter o Português como idioma materno é poder ler Ziraldo e Lygia Bojunga Nunes no original (sim, sim, Grande Sertão Veredas também, mas Menino Maluquinho é também um pequeno triunfo da Última Flor do Lácio, e danem-se as opiniões em contrário.)

Porém, Ficção Científica mesmo, eu descobri com a coleção completa de Jules Verne que tinha sido da minha mãe.

Eu a ganhei da minha avó Carmen quando completei dez anos de idade. Lembro bem a ocasião por dois motivos distintos. O primeiro: eu pedi para os tios e para minhas avós me darem livros de presente de aniversário (eu sempre odiei ganhar roupas, que era quase sempre o presente que vinha nos pacotes dos meus tios. A intenção era boa, eu sei, mas…).

O segundo motivo é porque meu aniversário de dez anos foi na época do começo da Primeira Guerra do Golfo. A Anna adulta estudou Relações Internacionais na faculdade por causa dessa batalha transmitida pela televisão.

E a Anna autora ama mundos que existem e não existem ao mesmo tempo por causa do Capitão Nemo e do professor Pedro Aronnax (lembrem-se, a coleção era da minha mãe — a tradução dos anos 1960 que vertia para o português o nome dos personagens. Então, para mim, até hoje é Pedro e não Pierre, Conselho e não Conseil, e o jornal que reportava as aventuras era O Tempo de Londres e não The Times.)

Quando comecei a escrever a série do Tempo Pretérito, eu tinha Jules Verne na cabeça. Não queria inventar alienígenas ou máquinas com tecnologia muito complexa. Não queria inventar um mundo: a história está ancorada em São Paulo como ela é/como ela foi, com todos os problemas, os buracos na rua e os orelhões laranjas com telefones vermelhos nas esquinas. Eu não sei como o Nautilus funciona, e por mim tudo bem. E, na minha cabeça, o pior inimigo do humano é o seu vizinho, não um perigo que veio do espaço.

Por isso, quase toda a tecnologia de Senhor Tempo Bom e de Saudades do Brasil é ancorada na vida real. É um vagão do metrô de São Paulo, como os da minha infância: assentos marrons desconfortáveis, um ambiente de plástico moldado e janelas sujas. E todos os inimigos da série se resumem ao que os personagens carregam consigo e precisam resolver — na marra, se necessário.

Aureliano Xavier, que vocês conheceram em Senhor Tempo Bom, é o meu Capitão Nemo. Parte da minha dificuldade em escrever Saudades do Brasil é justamente para explicá-lo para vocês. Como eu disse, eu nasci em 1981 — no fim da Ditadura Militar. Xavier, em 1981, era um homem de quarenta anos, como eu serei daqui a alguns meses. Como esse homem sem o menor talento científico conseguiu uma máquina do tempo? E para quê?

Respostas em Saudades do Brasil, espero. Ou pelo menos parte das respostas… Jules Verne, a Guerra do Golfo, os pais dos coleguinhas de escola que achavam que os milicos eram a melhor coisa que aconteceu ao país e as mães dos coleguinhas que faziam campanha pelas Diretas Já — tudo isso é o caldo no qual cozinho minha aventura de viagem no tempo. É um bom começo, não acham?

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